Uma vez, tive um sonho... Entre as poeiras dos tempos, entre as sombras das vidas... Me vi numa taverna cheia... Mas eu não era eu. Eu era outro. Eu era parte do que sou hoje... Era outro, mas era eu. Exótico. Esse alguém-eu levantou-se. O olhar de fera tinha paixão, lascívia e fúria. Desafiava os expectadores. Neles, se sentia todo tipo de emoção: amor, desejo, despeito, ódio, raiva... Como era possível que aquele cigano vagabundo ousasse encará-los daquela forma, eles, que eram pessoas de respeito e que trabalhavam de sol a sol? Que iam nas missas aos domingos? Enquanto aquela gente pagã e imunda vagava de terra em terra, entre embustes e mentiras, entre ilusões e desregramentos? Olhares expectantes... O gitano caminhava por entre a penumbra. Um gole de vinho, um trago num cigarro vulgar. Um olhar para o músico. Um passo certeiro. Escalou a cadeira. Ganhou a mesa, chutando a garrafa. Uma gargalhada. Será que ele já está bêbado? Não, estava apenas cansado daqueles olhares, dos olhares daquela gente porca que nada sabia da vida, que o julgava pelo ouro dos dentes, pela abertura da camisa, pelo cravo displicente guardado no peito. Que eles nem sabiam o que significava. Seu riso agora era irônico, era o riso de quem ama e espera, de quem não sabe nem se acordará no dia seguinte... Um momento de silêncio, o cenho fechou-se. Os olhos de fogo brilharam enigmáticos. A guitarra chorava uma soleá... Que falava de toda a angústia de uma alma livre, de toda a aflição da saudade de uma terra desconhecida, de uma terra onde cada um pudesse ser apenas o que era. Onde todos seriam livres, cada qual caminharia sua estrada. E dançaria... E a soleá arrancava lágrimas. Os olhares agora eram surpresos. A expressão era cada vez mais densa. O gitano espancava a mesa com os pés. Cada batida lembrava um golpe de adaga, cortava a alma, penetrava nos espíritos empedernidos, daqueles infelizes sem ambições e nem expectativas. Daqueles que sacrificavam mulheres e famílias, e filhos e honras por valores e bens, por ambições excessivas... Daqueles que ali entravam para fingirem o que não eram, para fugirem de si mesmos... Para esquecerem também que a vida não lhes sorria, tentando encontrar a felicidade entre copos sujos e braços estranhos... Daquelas que nada tinham a oferecer, que, vendendo o corpo mendigavam o amor que jamais teriam... O gitano batia o pé no compasso da soleá, sua expressão carregada falava de sua dor, de seu amor, da saudade que sentia do ser de luz que amava, mas que ninguém ali saberia adivinhar. Alguém de seu povo gritou. Um incentivo. A soleá ficou gravada no tempo. Virou um tangos... A expressão do cigano mudou. Agora ele se lembrava dos momentos felizes, os olhares o encaravam com um misto de surpresa e excitação, como ele trocava de cara tão rápido, estaria possesso por algum demônio? O músico sabia, não era demônio, era a essência do cante, era a essência da melodia, cada passo, cada volteio, cada arquear de braço ou de sombrancelha, cada vinco na face trazia a história e a marca, a essência e a pureza do sentimento que embalava seu sonho... E o povo sonhava. Com dias melhores. Com paixões ardentes que adoçassem a vida, com noites de prazer que fizessem esquecer as penitências, que fizessem esquecer que havia inferno e que eles iriam pra lá se o padre soubesse o que pensavam ou desejavam... O cravo caiu do peito do cigano, a música mudou de novo, a bizarra platéia agora não conseguia mais tirar os olhos dele, quem seria o próximo espírito que tomaria aquele corpo? Entre gritos e vozes, por fim, virou uma bullería. Na essência da palavra, um ritmo que burlava. O povo já ria, animado pelos gritos dos ciganos, estes, por sua vez, animados pelas palmas dos irmãos de raça, que sabiam exatamente o que o rapaz fazia, ali, em cima daquela mesa tôsca, naquele ambiente sórdido, as batidas do pé e das palmas marcavam o ritmo, os braços buscavam a liberdade... Uma bullería ardente e passional. Ensurdecedora. Infernal. As batidas eram como as batidas de seu coração, seu sangue pulsava numa sarabanda louca. O povo gritava. No último acorde, o final repentino... Choveram moedas. Choveram aplausos. Choveram sorrisos. Choveram elogios. O gitano, impassível. Seu suor escorria das faces afogueadas. Um sorriso ainda lhe brincava nos lábios, resquício dos momentos em que todo o seu ser era música, em que aquele espírito o tomava, aquele que chamaram el duende... Uma gargalhada. Que os expectantes não perceberam, mas os gitanos sabiam: não era para eles. Era deles. Uns parvos, uns tolos, que se deixavam impressionar por tudo o que fosse diferente, mas que no dia seguinte, lhes fechariam as portas, com seus ares canalhas. O cigano desceu da mesa. Olhar frio e indiferente. Contou as moedas, era o mínimo que merecia. Nova música recomeçou. Outra pessoa a bailar. Outra essência, outra história. Eternidade.
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2 comentários:
História que meche com sangue...faz o ânimo subir,dá vontade de dançar e o seu rítimo aplaudir.
Faz voltar no tempo onde ciganos eram verdadeiros,em que tudo em que se aprendia era passado apenas atraves de histórias...
Adorei sua história, eu sei bem o que é isso!
Gostaria de obter uma informação sua Ruano, se sabes o dia de Nossa Senhora de Macarena?
Preciso saber essa data.
Sou descendente de ciganos,conheço bem a magia cigana, Que Santa Sara, e Santa Macarena nos abençõe , grande abraço!
Renata
o meu e-mail é crisgong35@hotmail.com, se puder me escrever, ficarei grata!
Desde já obrigada.
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